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  A CULINÁRIA ITALIANA

Artusi, o guru da cozinha italiana

O renomado gastrônomo e escritor Pellegrino Artusi (1820-1911)

Pesquisou e sistematizou a cozinha regional de sua pátria, como Escoffier fez na França

   O teatro da pacata cidadezinha de Forlimpópoli, na região da Emília-Romanha, Itália, estava completamente lotado. A platéia aguardava em silêncio o início da peça La Morte di Sisara. Mas, quando a cortina vermelha do palco se abriu, em vez dos atores havia em cena um grupo de bandidos mal-encarados. Tinham as armas engatilhadas e apontadas para a platéia.

   Aguardavam apenas ordem do líder para disparar. O chefe da quadrilha, Stefano Pelloni, um ex-barqueiro apelidado Il Passatore (a pessoa que transporta outra num rio), gritou sem rodeios: "Isto é um assalto."

   Em seguida, avisou que o teatro se encontrava cercado. Exigia da platéia um resgate imediato. Cada família presente enviaria uma pessoa à casa, escoltada por um bandido, para trazer dinheiro e jóias. O roubo aconteceu a 25 de janeiro de 1851. Após a sua consumação, a quadrilha escapou em disparada. Mas dois meses depois seria localizada pela lei. Il Passatore, um foragido da cadeia, onde foi parar por homicídio, morreu em conflito com a polícia. Por muito tempo circulou na Itália a lenda de que deixara um tesouro escondido. Muita gente fuçou inutilmente a terra por onde o malfeitor passou.

   Essa história dramática, ainda hoje relembrada, não envolve diretamente a cozinha. Mas aparece em muitos livros de culinária italiana, inclusive na Grande Enciclopedia Illustrata della Gastronomia, editada pela Selezione dal Reader's Digest, de Milão, que lhe dedica um verbete especial. Fala-se dela por uma simples razão. O renomado gastrônomo e escritor Pellegrino Artusi (1820-1911) foi uma de suas vítimas do bandido Il Passatore. O crime alterou profundamente seu destino. Artusi tinha na época 31 anos. No dia do assalto, tocou-lhe o encargo de levar o emissário dos rapinadores à própria casa.

   Mas, aproveitando-se da confusão, escondeu-se no celeiro do teto, juntamente com a mais nova de suas sete irmãs. Apesar de não sofrer violência física, a moça foi abalada psicologicamente pelo roubo, a ponto de tratar-se no manicômio.

   Traumatizada com o acontecimento, a família se transferiu definitivamente para Florença, na região da Toscana, cidade elegante e culta. Em ambiente mais propício, Artusi desenvolveu seus múltiplos talentos. Atuou com sucesso no mercado financeiro, a ponto de fundar e dirigir um banco; aprofundou o conhecimento na literatura dos clássicos, publicando dois ensaios eruditos; pesquisou e sistematizou a cozinha regional de sua pátria, sobretudo da Emília-Romanha e da Toscana; converteu-se no guru da culinária italiana.

   Respeitadas as diferenças, desempenhou um papel equivalente ao de Auguste Escoffier (1846-1935), o cozinheiro que redefiniu os padrões da cozinha francesa e propiciou o seu sucesso internacional. Observe-se que os dois personagens foram contemporâneos.

   Em 1891, Artusi editou às próprias custas a obra-prima La Scienza in Cucina e L'Arte di Mangiar Bene. Nos anos seguintes, enriqueceu-a com subsídios e receitas - eram 475 na primeira edição, tornaram-se 790 na 13.ª. O sucesso foi imediato. Artusi concretizou a miragem de muitos escritores: vendeu o livro como água, sem ter editor, sem distribuidor. Por muitos anos era necessário pedi-lo diretamente ao autor, cujo endereço - Piazza d'Azeglio, Florença - ficou público em toda a Itália. Quando morreu, o livro havia alcançado a 14.ª edição. Hoje, continua best seller.

   É a obra mais lida pelos italianos, depois de Le Avventure di Pinocchio, de Carlo Collodi, com as peripécias do simpático boneco narigudo; e do romance Promessi Sposi, de Alessandro Manzoni, talvez a figura mais ilustre da moderna literatura italiana. Todos os anos, em junho, Folimpópoli, cidade atualmente com pouco mais de 11 mil habitantes, festeja o nascimento de seu filho mais ilustre com um evento internacional. Promove um festival de culinária 'artusiana' e concede prêmios a cozinheiros e figuras ligadas à gastronomia. Curiosamente, longe de sua pátria, o livro La Scienza in Cucina e L'Arte di Mangiar Bene é pouco difundido nos estratos gastronômicos. A maioria das pessoas desconhece a existência de Artusi e sua obra monumental que, além do receituário, oferece um pouco de tudo.

   Um dos capítulos mais curiosos teoriza sobre normas de higiene. Artusi começa citando o imperador romano Tibério, sucessor de Augusto. Endossa sua famosa sentença: ao chegar aos 35 anos, o homem poderia dispensar o médico.

   Nessa idade, já teria adquirido experiência sobre si para conhecer aquilo que prejudica a saúde e o que a favorece. Mais adiante, Artusi enfatiza o poder nutritivo da carne. No final, fala da cozinha "para os estômagos débeis". Também faz sugestões de cardápio para todos os meses do ano.

   Quanto às receitas, há simples e sofisticadas. São distribuídas segundo a ordem habitual da refeição italiana, com uma exceção: brodo, minestra e zuppa antecedem os antepastos, como na Toscana. Para escrever seu livro clássico, Artusi - que era homem riquíssimo e tinha muitos criados - contou com a ajuda da cozinheira toscana Marietta Sabatini e do cozinheiro emiliano Francesco Ruffilli. Aos 91 anos, morreu serenamente, embora jamais tivesse apagado a lembrança do tenebroso assalto de Forlimpópoli, que relatou milhares de vezes. Até os últimos dias viveu cercado pelos amigos, entregando-se às leituras e, naturalmente, às alquimias da maravilhosa culinária regional italiana. (© O Estado de S. Paulo)

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