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Fellini, entre o sublime e o grotesco

04/06/08

Veneza foi reconstituída nos estúdios de Cinecittà

No filme que fez sob encomenda e é relançado em SP, com cópia nova, o grande diretor italiano vai além do retrato histórico e humaniza a imagem do sedutor vulgar

Luiz Zanin Oricchio

   São Paulo - De que maneira é possível fazer uma obra-prima se não se tem simpatia pelo personagem central? Essa é a pergunta que o espectador tem vontade de fazer quando vê o deslumbrante Casanova de Fellini, que reestréia na cidade com cópia nova. A adaptação das Memórias de Giacomo Casanova era uma encomenda feita a Fellini, que a havia prometido em troca de outros projetos, tidos como menos comerciais, incluindo o de Satyricon. Fellini leu a tediosa autobiografia do veneziano. Não ficou fascinado. Longe disso.

   Casanova lhe pareceu um sedutor vulgar, contabilista do amor, amante preocupado em bater recordes, um adepto do sexo mecânico. Retratou-o com toda a antipatia. Teve de aceitar o norte-americano Donald Sutherland para o papel, e modificou-lhe as feições para que ficasse parecido com o perfil aquilino atribuído a Giacomo Casanova. A saída de Fellini foi exacerbar o desgosto que o personagem lhe causava. Transformou o sedutor num bufão frívolo, entediado, vivendo num mundo alienado, do qual ele era um dos expoentes. Mas esse retrato não se faz sem ternura nem sem doses fartas de imaginação.

   Quem assiste à abertura do filme, uma feérica festa náutica em Veneza, já tem idéia do espetáculo que virá a seguir. Fellini podia tocar um projeto por imposição comercial, mas o transfigurava completamente por obra de sua imaginação.

   A estratégia de construção ficcional de Fellini manda que se alternem cenas sublimes com grotescas. É mais do que estratégia: uma visão de mundo. Assim, por exemplo, assistimos ao pobre Donald Sutherland protagonizar cenas ridículas, como uma seqüência de sexo testemunhada por um estranho pássaro mecânico e, noutra, disputando um grotesco campeonato de orgasmos com um criado. Essas imagens, aliás, ficaram longos anos proibidas pela censura no Brasil.

   Bem, o "artificialismo" de Fellini é algo que já se conhece. É evidente que ele não se dispôs a filmar na Veneza real. Reproduziu-a em Cinecittà, com seus edifícios históricos e canais. A abertura, com cenas do carnaval de Veneza, colocou os produtores com os cabelos em pé. Fellini reproduziu em estúdio o Canal Grande com a ponte do Rialto e colocou mais de 600 figurantes em cena.

   Hedonismo - A grandiloqüência não é gratuita. Era preciso que o espectador fosse preparado para ingressar na vida de um personagem da Ilustração, habitante de um mundo de sociedade frívola e dispendiosa, no qual a festa tem um papel particular. Por isso, é preciso prestar atenção a tudo que cerca o personagem - os cenários, os objetos de cena, as roupas.

   O brilhantismo dessa recriação, que já se chamou de rococó, faz de Casanova um objeto cinematográfico que vai além do filme meramente histórico. Fellini fala de um tempo distante para falar da nossa própria época. Retrata esse personagem oco (o ´hollow man´, de que falava Eliot) porque nele a aparência passou a ser o mais importante e comanda todo o resto. Casanova não ama as mulheres, ele as usa, e por elas é usado, como vê depois. Não habita as coisas nem os lugares, apenas passa por eles. Não usufrui do luxo ou do conforto, apenas os ostenta, porque nele tudo é superficial, mesmo a fruição. Esse personagem não é um retrato de época. É uma advertência.

(© O Estado de S. Paulo)


Em "Casanova", Fellini filma amor deslocado

No clássico de 1976, cineasta italiano mostra o histórico sedutor como um homem gélido e lamentável

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

   Pouca gente lê, hoje em dia, os incontáveis volumes de memórias do veneziano Giacomo Casanova (1725-1798). Gabola, jogador e charlatão, pretendia-se diplomata, filósofo, matemático, romancista; seu nome ficou para a história como sinônimo de conquistador e aventureiro. Não é um personagem antipático. Em filmes como "Casanova e a Revolução", de Ettore Scola, por exemplo, surge como uma espécie de sábio envelhecido e tolerante, a quem Marcello Mastroianni, já em fim de carreira, conferia o maior charme.

   À primeira vista é difícil saber por que, depois do sucesso de "Amarcord" em 1974, Federico Fellini decidiu-se a adaptar as "Memórias" de Casanova para o cinema. O diretor tem uma indisfarçável antipatia pelo personagem -mas o filme não se torna menos notável por isso.

   Ao lado de "Satyricon" (1969) e de "Roma" (1972), "Casanova" (1976) pertence ao grupo dos filmes "frios" (isto é, sardônicos, modernos, anti-sentimentais) de Federico Fellini. Não encontramos mais aquelas almas inocentes e brutalizadas presentes nos filmes da década de 1950, como "La Strada" ou "Noites de Cabíria". Tampouco a nostalgia agridoce de "Amarcord" e de "A Entrevista" se deixa vislumbrar nas cenas, sempre bizarras e elípticas, desta viagem de Fellini através das memórias do famoso libertino do século 18.

   Tudo, a começar pela figura do protagonista (vivido por um Donald Sutherland descorado, exangue, como que feito de parafina) é feito para provocar no espectador o estranhamento, quando não a repugnância.

   Não faltam, claro, as assustadoras mulheres fellinianas -embora o diretor desta vez tenha evitado as gordíssimas; aposta mais nas velhas, nas lunáticas e matusquelas. Mesmo a ótima música de Nino Rota não oferece seus habituais e envolventes prazeres ao ouvinte: é áspera, lembrando Stravinsky e Prokofieff.

   As cenas de sexo, a que Casanova se dedica com profissionalismo e indiferença de ginasta, sucedem-se numa variedade estonteante de cenários, pretextos e países: uma ilhota em Veneza, uma estalagem em Dresden, um caótico palácio em Roma, um misto de santuário e laboratório alquímico em Paris acolhem as atividades do protagonista -que se vê em companhia, respectivamente, de uma freira que parece chinesa, de uma corcundinha de língua agilíssima, de uma italiana frígida e de uma anciã demente e ocultista.

   Não é preciso dizer que, em todas essas ocasiões, Casanova está na verdade sempre só. A palavra "amor", algumas vezes pronunciada durante o filme, parece propositalmente deslocada e sem sentido.

Apatia e saciedade

   Dizia-se muito, nos anos 70, que a voga da liberdade sexual terminaria provocando apatia e saciedade, depois dos escândalos iniciais. O filme de Fellini sem dúvida procura comprovar essa tese, exaurindo Donald Sutherland -e também o espectador- ao longo de mais de duas horas de maquinais estrepolias.

   Mesmo assim, quase 30 anos depois da estréia, "Casanova" não envelheceu. As estranhezas de estilo e as interrupções da narrativa parecem ter-se suavizado com o passar do tempo, abrindo mais espaço para a deslumbrante magia do filme. O contraste entre as cenas "vazias" -neve, bruma esverdeada, noite- e os momentos de saturação quase oriental da tela -carruagens, brocados, adereços- é operado magistralmente por Fellini, como que simbolizando o destino do personagem, que se alterna entre a promiscuidade e a solidão.

   Não há praticamente nenhuma cena de nudez em "Casanova". Já as belas roupas, as cortinas, as cobertas, os véus, lenços, veludos e rendas funcionam como verdadeiros personagens do filme -do mesmo modo que o célebre plástico preto de uma das cenas iniciais. Utilizado por Fellini para fazer de conta que é água do mar, sua evidente falsidade serve para denunciar o artifício de tudo.

   É que justamente o gosto do artifício, da cerimônia, da ilusão, aproxima o século 18 europeu do mundo tipicamente felliniano dos palhaços, do circo, do teatro, do Carnaval. O Casanova de Donald Sutherland é também um "clown", gélido e lamentável, caminhando sempre para o declínio -e Fellini não hesita em traçar uma hierarquia civilizacional entre as nações, que vai dos refinados salões franceses à rigidez espanhola, à esbórnia inglesa e à franca barbárie alemã.

   Duas cenas antológicas valem o filme inteiro. O apagar das luzes num teatro em Dresden, enquanto Casanova fica de pé, sozinho, na platéia; e a aparição da carruagem do papa, fulgurante de ouro, sobre as águas congeladas do Gran Canale de Veneza, a que se segue uma dança estilizada e fúnebre do protagonista com sua derradeira amante. Quase insuportável; maravilhoso também.

Casanova de Fellini
Il Casanova di Federico Fellini
    
Produção: Itália/EUA, 1976
Direção: Federico Fellini
Com: Donald Sutherland, Tina Aumont e Cicely Browne
Quando: em cartaz no Cinesesc

(© Folha de S. Paulo)


Diretor italiano propõe Casanova grotesco

SÉRGIO RIZZO
do Guia da Folha

   As memórias do veneziano Giacomo Girolamo Casanova (1725-1798) ocupam, na íntegra, seis volumes e mais de 2.000 páginas. Publicada pela primeira vez cerca de 20 anos depois de sua morte, a obra tem parcela reduzida de seu conteúdo dedicada às supostas conquistas amorosas do narrador, auto-intitulado Cavaleiro de Seingalt, e cuja vida intensa incluiu altos e baixos em diversas partes da Europa. Foi o material picante, no entanto, que consolidou a fama de Casanova e transformou seu nome em sinônimo de libertinagem.

   É também esse o aspecto iluminado por "Casanova de Fellini" (76). Foi mesmo pensando nisso que o produtor Dino de Laurentiis se animou com o projeto --imediatamente posterior, na carreira do cineasta, ao sucesso internacional das reminiscências sentimentais de "Amarcord" (74). De Laurentiis imaginava algo na mesma linha: picaresco, solar, divertido. Não era, afinal, de amor que se tratava?

   Sorte dele que abandonou o barco logo no início. Fellini fez outra leitura da trajetória amorosa de Casanova --"personagem sem emoção, símbolo de nossos tempos", "o macho italiano em sua versão sinistra, um patife, um fascista" e "um boa-vida antipático, um Pinóquio que se recusa a tornar-se um menino bonzinho", nas frases de efeito recolhidas pelo biógrafo Tullio Kezich. Seu filme reflete, além dos problemas de produção que tiraram do cineasta o prazer pelo trabalho, essa visão soturna de alguém que, em tese, deveria ser invejado.

   O Casanova de Fellini, ao contrário, inspira piedade, talvez asco, jamais simpatia ou cumplicidade. Interpretado por Donald Sutherland, escolhido por eliminação depois que diversos outros atores --entre os quais Robert Redford, Alberto Sordi e Gian Maria Volonté-- foram descartados, ele se ergue como figura grotesca e fantasmagórica em um dos trabalhos mais estilizados de Fellini, premiado com o Oscar de figurino (e indicado ao de roteiro adaptado). Muita ordem, muito gelo. Não por acaso, depois viria "Ensaio de Orquestra" (78), mergulho no caos.

(© Folha Online)

E la Nave Va de Fellini agora em DVD

Selo Versátil lança o último grande filme do diretor italiano de As Noites de Cabíria e Julieta dos Espíritos

   São Paulo - Nos últimos tempos, o cinéfilo tem sido brindado (pela Versátil) com uma série de lançamentos em DVD de grandes filmes de Federico Fellini. Desde o primeiro (meio) filme de Fellini, Mulheres e Luzes em parceria com Alberto Lattuada, e depois através de A Estrada da Vida, As Noites de Cabíria, A Doce Vida, Oito e Meio e Julieta dos Espíritos, momentos importantes da obra do diretor foram resgatados em discos digitais de alta qualidade de imagem e som. Chega agora a vez de E la Nave Va, DVD também da Versátil.

   Quando Fellini morreu, em 1993, tornara-se tão popular que seu nome, transformado em adjetivo - felliniano - designava algo de feérico ou imaginativo. E Fellini atingiu essa popularidade sem transigir consigo mesmo. Nunca precisou deixar de fazer os seus filmes do jeito que queria, para ser reconhecido pelo público. Apesar da fama e dos prêmios (uma Palma de Ouro, cinco Oscars, dos quais um especial, de carreira), ele não era uma unanimidade. Há críticos que simplesmente não gostam de seusfilmes e erigem todo um sistema teórico para desacreditá-los. Os últimos, a bem da verdade, transmitem uma misantropia (Fred e Ginger) no limite do (in)suportável e há o caso de A Voz da Lua que, salvo revisão, carece da famosa mágica felliniana. Nesse quadro de avaliação, E la Nave Va possui a fama, justificada, de ser o último grande filme de Fellini.

   Foi o primeiro filme de Fellini em que ele não teve a cumplicidade de Nino Rota. Fellini criou a música de E la Nave Va, com Luis Bacalov. Até que, neste caso, não foi difícil manter a magia, pois Fellini e Bacalov samplearam standards da música clássica, o que é perfeito para um filme baseado no bel canto. O navio do título leva as cinzas de uma famosa diva, cujo último e extravagante pedido foi justamente ter suas cinzas lançadas ao mar. A bordo segue uma fauna exótica, tipos mais do que personagens, como passou a ocorrer a partir de certo momento na sua obra. Se bem que E la Nave Va tem um fio condutor e ele é desenvolvido por um homem não muito sedutor.  Freddie Jones é o intérprete. A época é a Belle Époque e, na verdade, o enterro da diva é o enterro de um mundo que haveria de soçobrar com a 1ª Guerra Mundial. E o fio condutor é esse jornalista bêbado, que distorce os fatos por gosto, exagero ou complacência com o próprio jornal. Um personagem que Fellini não queria que fosse simpático. Ele será a testemunha crítica da débâcle de todo um mundo, de um estilo de viver.

(© Pernambuco.com)

 

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