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A estratégia das margens do silêncio

Carlo Ginzburg

O historiador italiano fala de "Nenhuma Ilha É uma Ilha", que está saindo no Brasil, e defende que a ficção pode ter uma influência prática sobre o real

Adriano Schwartz
especial para a Folha

   O italiano Carlo Ginzburg (1939) é um dos principais historiadores vivos e um grande ensaísta. Nos quatro textos de "Nenhuma Ilha É uma Ilha" [Companhia das Letras, trad. Samuel Titan Jr., 152 págs., R$ 30], dedica-se em especial a questões de literatura inglesa.

   No primeiro deles, ele discute a que gênero se filia a "Utopia", de Thomas More; no segundo, debate a rixa sobre os "meandros do verso grego, italiano ou inglês" no período elisabetano; no terceiro, tenta mostrar como "Tristram Shandy", de Laurence Sterne, foi influenciado pelo "Dicionário Histórico e Crítico" de Pierre Bayle; no último, ele aponta uma inesperada relação entre as idéias do antropólogo polonês Bronislaw Malinowski e o conto "O Demônio da Garrafa", de Robert Louis Stevenson.

   Apesar de os ensaios apresentarem a usual enorme erudição do autor, de quem a Companhia das Letras já lançou, entre outros livros, "O Queijo e os Vermes" e "Os Andarilhos do Bem", é difícil que a sua leitura não provoque alguma decepção em quem acompanha sua obra pregressa.
Os textos não têm nem a carga teórica inventiva de um "Sinais: Raízes de um Paradigma Indiciário" (em "Mitos, Emblemas, Sinais") nem a percepção precisa e necessária de "Um Lapso do Papa Wijtyla" (em "Olhos de Madeira"), para citar dois exemplos indiscutíveis entre muitos outros.

   "Nenhuma Ilha É uma Ilha" é um livro, mais do que todos os mencionados acima, para especialistas. Ainda assim, propicia uma série de questões sobre a relação entre literatura e história. Algumas delas foram respondidas a seguir, na entrevista que concedeu por e-mail ao Mais!.
 

Entre as suas declaradas influências estão críticos como Leo Spitzer e Erich Auerbach, que são influências também de Quentin Skinner, com quem o sr. polemiza no primeiro ensaio de seu livro. Não é curioso que, em maior medida, a sua obra, mas também a de Skinner, sejam hoje tão relevantes para os críticos literários e os textos de, principalmente, Spitzer e, um pouco menos, de Auerbach estejam bastante deixados de lado?
Antes de responder a sua questão, pode ser útil recordar alguns fatos. Na década passada, foram publicados os anais de três conferências internacionais a respeito da obra de Auerbach [no Brasil (1994), EUA (1996) e Alemanha (1998)]. Outra conferência sobre ele está marcada para dezembro, em Berlim, e, entre seus participantes, estarão Luiz Costa Lima, Horst Bredekamp e acadêmicos de todo o mundo. Longe de enfraquecer, o interesse no trabalho de Auerbach está mais vivo do que nunca.
No caso de Leo Spitzer, você tem razão. Aparentemente, os seus grandes ensaios não atraem muito as novas gerações. Por quê? O fato de Spitzer nunca ter escrito um livro abrangente (embora assistemático) como "Mímesis" [ed. Perspectiva], de Auerbach, me parece totalmente irrelevante. Como alguém explicaria, então, o enorme impacto da obra de Walter Benjamin, fragmentária, não-terminada, obscura?
Posso procurar por uma resposta em uma direção diferente. Tanto Auerbach quanto Benjamin, que se conheciam e trocaram correspondência, se aproximaram da literatura como um fenômeno que poderia ser entendido apenas à luz de alguma outra coisa e poderia esclarecer algo -a sociedade, a história etc. Em outras palavras, ambos se aproximaram da literatura a partir de uma perspectiva profética: óbvia no caso de Walter Benjamin, implícita no caso de Erich Auerbach.
Spitzer foi diferente. Ele se centrou exclusivamente na literatura, usando uma abordagem que conectava filologia e psicologia (uma relação problemática).
Mas ele não foi um crítico de críticos: sua vitalidade contagiosa, brilhante, histriônica merece uma audiência muito maior. Ele a encontrará um dia.

A sua descrição de "Utopia", de Thomas More, não a aproxima da concepção de romance de Bakhtin, tanto pelas ligações com Luciano e o sério-cômico quanto pela idéia de diálogo permanente entre ficção e realidade?
Bakhtin está constantemente em minha mente. Mas, no caso de "Utopia", a referência a Luciano era óbvia, por muitas razões, a começar pelo fato de que Thomas More e seu amigo Erasmo traduziram alguns diálogos do autor latino. Mas, se não estou enganado, meu uso de Luciano para ler a "Utopia" foi diferente do usual e me levou a conclusões distintas.
Argumentei que os elementos ficcionais do texto de More, além de serem parte de uma estratégia deliberada, foram um instrumento que abriu uma série de possibilidades cognitivas. Por meio dessa ilha imaginária, More pôde ver (e descrever) uma realidade sem precedentes: a destruição do velho sistema agrário, processo que, a longo prazo, foi um dos pré-requisitos da Revolução Industrial.
Esse é apenas um exemplo de um fato bem sabido, mas muitas vezes esquecido: algumas ficções, tanto legais como literárias, podem ter influência cognitiva ou prática sobre a realidade. Lidei extensivamente com essa idéia neste livro que está saindo agora no Brasil, bem como em "Relações de Força".

A sua forma de estruturar o texto, baseada em pequenos conjuntos de parágrafos numerados, lembra, para permanecer em seu vocabulário teórico, a exposição de uma série de indícios. Ainda que seu texto não se negue a estabelecer conclusões, tenho impressão de que, com o passar dos anos, o sr. está cada vez mais preocupado com a exposição do que com um veredicto final, ampliando o que se poderia chamar de "margens de silêncio" em seu texto. Essa impressão é verdadeira?
Aceito a expressão "margens de silêncio", mas com uma qualificação. Tenho a impressão de que estou tão comprometido como sempre estive em chegar a uma conclusão e anunciá-la (uma demonstração, se você preferir), mas estou cada vez mais interessado em envolver o leitor na minha busca. Essa estratégia é aprimorada pelo ensaio, como forma literária, uma vez que elipses, atalhos, silêncios são mais facilmente aceitos em um ensaio. Eu me aproveito dessas possibilidades para estabelecer uma relação mais exigente com meu leitor. Mais exigente e (espero) mais satisfatória.

Ainda falando de indícios, há, do ponto de vista literário, uma discussão que se aproxima de seu famoso ensaio "Sinais". O escritor argentino Ricardo Piglia costuma defender a idéia de que a literatura atual é dominada pelo gênero policial, tendo escrito que, "em mais de um sentido, o crítico é o investigador, e o escritor é o criminoso". Qual é sua opinião sobre isso?
Concordo, mas o romance policial é um episódio em uma história muito mais longa. "Édipo Rei" já encena um enredo em que o protagonista decifra os traços de seu próprio crime. Pergunto-me se essa atitude não está no centro da literatura: um jogo de esconde-esconde entre o escritor e seu primeiro leitor: ele mesmo.

"Tristram Shandy" é uma das mais importantes influências de Machado de Assis. O terceiro ensaio de seu livro se torna assim muito importante para a crítica brasileira...
Devo confessar que, quando li "Tristram Shandy" pela primeira vez, ainda não tinha conhecimento do trabalho de Machado de Assis. Mas "Dom Casmurro" (uma das mais inesperadas experiências de leitura de toda minha vida) também afetou minha percepção do livro. Como T.S. Eliot disse de modo célebre, uma obra verdadeiramente original cria, retrospectivamente, a sua própria genealogia...


Adriano Schwartz é doutor em teoria literária pela USP e autor de "O Abismo Invertido - Pessoa, Borges e a Inquietude do Romance em "O Ano da Morte de Ricardo Reis'" (ed. Globo).

(© Folha de S. Paulo)

Para saber mais sobre este assunto (arquivo ItaliaOggi):

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