Clemens Höges
Em Lampedusa (Itália)
Da Der Spiegel
Moradores da ilha italiana de Lampedusa estão se rebelando contra
Roma. Milhares de refugiados que chegaram lá de barco poderão ser em
breve colocados em um centro de detenção na pequena ilha, para impedir
que entrem na União Europeia e desapareçam.
Quando os dramas tornam-se comuns, até mesmo os idealistas podem às
vezes parecer insensíveis. Antonino Maggiore diz que deseja construir
"um mundo melhor" - para os italianos, ainda mais para os estrangeiros
perseguidos e, na verdade, para todo mundo. Maggiore tem 25 anos, uma
idade na qual é de se esperar pronunciamentos idealistas desse tipo. Ele
dirige uma organização chamada Juventude Alternativa e trabalha para a
emissora Rádio Delta, na ilha de Lampedusa, ao largo da costa do norte
da África, um posto avançado da fortaleza Europa.
Os amigos dele na Rádio Delta transmitem músicas alegres que promovem um
mundo melhor, enquanto Maggiore relata as notícias do mundo real. No
entanto, só há um tipo de notícia que ele nunca lê: a de que as duas
embarcações cinzentas da alfândega de Lampedusa rebocaram mais um barco
a remo caindo aos pedaços até o porto da ilha. Alguns dos passageiros -
homens, mulheres e crianças da África - estão invariavelmente mortos ou
semi-mortos quando chegam a Lampedusa. "Se eu tivesse que falar sobre
essas histórias todas às vezes que elas ocorrem, estaria noticiando a
mesma notícia todos os dias", diz Maggiore.
No ano passado, 36.952 refugiados chegaram de barco às costas italianas.
Cerca de 31 mil deles desembarcaram em Lampedusa. Ninguém sabe quantos
morreram na tentativa de chegar à Europa. As organizações de auxílio
humanitário calculam que para cada três refugiados que chegam vivos, um
morre no mar.
O próprio continente africano é, de certa forma, como o mar que os
migrantes atravessam. Ele envia ondas sucessivas de refugiados que vão
quebrar-se todos os anos nas escarpadas costas europeias. É impossível
deter as ondas, e a única forma de controlá-la é construindo novos
quebra-mares. Os espanhóis deram início ao processo, primeiro selando o
Estreito de Gibraltar e, depois, os seus enclaves norte-africanos de
Ceuta e Melilla. Atualmente a rota de 130 quilômetros da Tunísia a
Lampedusa, uma viagem de dez horas em barcos de pesca, é a mais fácil
para os refugiados oriundos da África.
E, conforme argumenta o primeiro-ministro Silvio Berlusconi, é
precisamente por isso que a ilha turística mediterrânea precisa
transformar-se no quebra-mar mais eficiente da Europa. A sua coalizão de
centro-direita deseja construir um novo centro de detenção de grande
porte na ilha. Durante as eleições de abril do ano passado, os partidos
de direita do país prometeram expulsar os imigrantes ilegais o mais
rapidamente possível. E agora eles estão a ponto de cumprir a promessa -
em Lampedusa.
Segundo a nova política proposta por Roma, os migrantes não serão mais
transportados diretamente para o continente, mas sim para campos de
refugiados na ilha. Lampedusa é ideal para isso. Não é possível sair de
lá sem um barco, e um forasteiro teria dificuldades para se esconder por
mais do que alguns minutos na única cidade da ilha. Algum dia os
africanos serão deportados para algum outro país - mas isso será difícil
e demorado.
Os 6.000 italianos que moram em Lampedusa passaram as duas últimas
semanas fazendo rebeliões e greves para protestar contra os planos do
governo para a ilha. Eles temem que o centro de detenção possa
prejudicar o turismo, uma das bases da economia local. Afinal, quem vai
passar férias em Guantánamo? Alguns temem que milhares de refugiados
venham para Lampedusa, e que toda essa operação seja maior do que aquela
referente ao famoso campo de detenção norte-americano.
Apesar de tais temores, não existe aqui nenhum graffiti racista ou
xenófobo. Os moradores não entoam slogans hostis, e os italianos
chegaram até a construir um memorial em homenagem aos refugiados que se
afogaram. Muitos desejam aos africanos uma vida boa - mas não na ilha.
Quanto a isso, eles concordam com os cerca de 1.300 refugiados que
encontram-se atualmente trancados no velho campo provisório, que foi
construído para acomodar 380 pessoas.
Os moradores de Lampedusa dirigem a sua raiva contra Berlusconi e o
ministro do Interior, Roberto Maroni, da direitista Liga do Norte. Eles
estão especialmente revoltados com a recente declaração de Berlusconi,
que afirmou desconhecer qualquer situação precária em Lampedusa, e
acreditar que os refugiados têm liberdade "para sair quando quiserem e
tomar uma cerveja". Agora os moradores da ilha temem que os turistas
achem que encontrarão africanos bebendo na ilha. Já os refugiados sabem
por experiência própria que as palavras do primeiro-ministro não fazem
sentido.
Dois dias atrás, os italianos, liderados pelo prefeito de Lampedusa,
fizeram uma passeata até o campo de detenção. Ao vê-los, os refugiados
pularam as cercas, gritaram "liberdade, liberdade" e juntaram-se à
marcha de protesto.
A seguir os moradores da ilha fizeram uma greve geral, praticamente
paralisando Lampedusa. A atividade na ilha durante o inverno já é bem
pequena, mas, de qualquer maneira, eles mandaram uma mensagem à Roma.
"Nós ainda desejamos um futuro", diz Antonino Maggiore. Mas ele não quer
passar esse futuro trabalhando como guarda carcerário. "Os africanos que
chegam de barco querem ir para a Europa, e não para Lampedusa. Por que
então esta pequena ilha teria que resolver um problema que aflige toda a
Europa?".
Nenhum refugiado jamais permaneceu em Lampedusa. Muitos partem para a
Europa e mergulham na clandestinidade, colhendo laranjas na Espanha,
limpando vasos sanitários na França ou lavando pratos nos restaurantes
de Hamburgo e Munique - como trabalhadores ilegais ou "clandestini",
como são chamados em Lampedusa. Eles não desejam retornar à Etiópia ou a
Mali, onde pagaram a traficantes de seres humanos uma quantia de US$
2.000 a US$ 4.000 por uma viagem só de ida. Os destinos dessas pessoas,
seja a morte ou a sobrevivência, frequentemente é decidido no último
passo rumo à Europa, a viagem de barco rumo a Lampedusa.
Os traficantes ancoram as embarcações em vilas costeiras da Tunísia ou
da Líbia. Apontando para o norte com os dedos, eles dizem aos refugiados
que, assim que avistarem terra, devem destruir os lemes ou motores
precários dos seus barcos. Depois disso, só resta aos refugiados
esperar.
Se um barco à deriva não for descoberto, as pessoas a bordo morrerão.
Mas, se forem avistados pelos aviões de patrulha operados pela agência
europeia de controle da fronteira europeia Frontex, por exemplo, os
refugiados estarão protegidos pelo Artigo 98 da Convenção das Nações
Unidas sobre a Lei do Mar, que estipula o dever de prestar assistência a
embarcações em perigo. Quando isso ocorre, as lanchas rápidas de
Lampedusa dirigem-se infalivelmente ao barco dos refugiados e rebocam os
imigrantes ilegais até o porto.
Os moradores acostumaram-se a esses hóspedes temporários. Isso não é
difícil, porque ninguém os vê. Lampedusa tem nove quilômetros de
comprimento por três de largura, e só há uma pequena cidade na ilha. Há
alguns anos o governo construiu o velho campo de refugiados em uma
colina. As cercas e os guardas que ficam em torno do campo garantem que
os refugiados fiquem fora da cidade. É como se eles ainda estivessem na
África.
Mauro Buccarello teme que tudo isto mude quando o novo campo for
construído. A prática de virar as costas para o fato, cultivada no
decorrer dos anos, poderá terminar. "O problema é a psicologia dos
turistas", diz Buccarello. Ele tem 32 anos e está muito bem vestido.
Buccarello usa grossos anéis de pratas nos dedos polegares e mínimos,
veste roupas caras e tem muito a perder com a construção do campo de
refugiados. Ele ganha bem transportando no seu barco turistas que
praticam scuba diving nos locais mais belos espalhados pela costa.
Mas os turistas podem ser criaturas sensíveis. Eles não querem ver
pessoas esquálidas nem sentirem-se ansiosos. Muitos turistas manterão
distância da ilha caso saibam que milhares de africanos sem nenhuma
perspectiva estão detidos em Lampedusa. O fato de o governo na distante
Roma planejar construir o campo na extremidade da ilha, no terreno de um
ex-quartel militar, não ajuda.
Em outras palavras, nada mudará para os turistas, e no entanto tudo será
diferente, teme Bernardino de Rubeis, o prefeito. Todos na ilha o chamam
pelo apelido, "Dino". Ele tem mais de dois metros de altura. "Se as
pessoas acharem que isto será uma prisão ao ar livre para 5.000
imigrantes, o turismo em Lampedusa entrará em colapso".
Rubeis diz que os assessores de Berlusconi não serão capazes de deportar
os refugiados com rapidez suficiente, se é que algum dia os deportarão.
Ele observa que a Itália só possui um acordo em vigor com o Egito, mas
que pouca gente vem daquele país. Ninguém se dispõe a aceitar os
imigrantes que vem de outras nações.
"Se quisermos que tudo permaneça como está, tudo terá que mudar", disse
Alain Delon para Burt Lancaster no filme "O Leopardo". Giuseppe Tomasi é
o autor do livro no qual o filme se baseia. "Quando uma onda grande
chega, é impossível nadar contra ela", escreveu ele. Na época ninguém
falava em refugiados africanos.
Mas muitos na ilha estão familiarizados com o livro dele, que foi
publicado em 1958. Tomasi tinha os títulos de Duque de Palma, Barão de
Montechiaro e Príncipe de Lampedusa.