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A função dos intelectuais

06/02/2003

Umberto Eco

 

Sua contribuição à política é expressar idéias inovadoras, cabendo aos políticos ler o que escreveram. Não lhes serve o papel de oráculos

Umberto Eco

   Numa conferência organizada recentemente pela CGIL, a maior central sindical italiana, alguns acadêmicos foram convidados a opinar sobre problemas da atualidade. Eu estive lá e fiz comentários que os jornais reproduziram de forma muito incompleta. Recebi, depois, vários pedidos para esclarecer meu ponto de vista - e é o que pretendo fazer agora.

   Cheguei àquele encontro com o receio de que, como costuma acontecer, uma entidade política quisesse pedir a alguns 'intelectuais' idéias sobre como a Itália deve ser conduzida. Nada me causa mais irritação (ao mesmo tempo em que me faz sorrir secretamente sempre que, para minha sorte, isso não me é pedido) do que ver intelectuais na função de oráculo.

   Naturalmente, eu defendo a idéia de que, hoje em dia, não se pode entender por 'intelectual' alguém que trabalhe com a cabeça mais que com os braços. Um funcionário de hotel que anota as reservas em um computador trabalha com a cabeça, enquanto um escultor utiliza os braços. Para mim, 'intelectual' é quem exerce uma atividade criativa nas ciências ou nas artes, o que inclui, por exemplo, um agricultor que tem uma idéia nova sobre a rotação dos cultivos. Em resumo, o autor de um bom manual de aritmética para o ensino médio não é necessariamente um intelectual, mas, se ele escrever esse livro adotando critérios pedagógicos inovadores e eficazes, pode ser.

   Esclarecido esse ponto, vamos examinar os três modelos de intelectual que a antiga Grécia nos oferece.

   O primeiro é Ulisses, que, na Ilíada, assume a função de 'intelectual orgânico', de acordo com a velha definição dos partidos de esquerda. Agamênon pede a Ulisses para descobrir um meio de conquistar Tróia e ele tem a idéia do cavalo. Como Ulisses pertence organicamente àquele grupo, não se preocupa com o que os gregos farão com os filhos de Príamo, o rei de Tróia. Mais tarde, tal como os intelectuais orgânicos que entram em crise existencial e vão morar numa comunidade esotérica ou arrumam emprego em alguma multinacional, Ulisses resolve navegar, cuidar da própria vida.

   O segundo modelo de intelectual dos antigos gregos é Platão. Ele não apenas possui idéias próprias sobre o papel dos intelectuais como oráculos, como acredita que os filósofos são capazes de ensinar como se governa bem. Sua experiência com o tirano de Siracusa não foi das mais felizes. A conclusão é que devemos tomar cuidado com os filósofos que elaboram modelos concretos de bom governo. Se vivêssemos na ilha da Utopia concebida por Thomas Morus ou numa das comunidades de trabalhadores inventadas por Charles Fourier, os falanstérios, estaríamos mais insatisfeitos do que um moscovita nos tempos de Stalin.

   O terceiro modelo é o de Aristóteles, que, como se sabe, foi o tutor de Alexandre, o Grande. Aristóteles nunca deu a seu pupilo conselhos práticos sobre o que fazer - se deveria cortar o nó górdio ou se casar com Roxana. Em vez disso, ensinou a Alexandre o que é a política, o que é a ética, qual é a estrutura de uma tragédia teatral, quantos estômagos um ruminante possui. Mas, ainda que Alexandre tivesse extraído proveito de todas essas lições, poderia ter aprendido as mesmas coisas se Aristóteles não fosse seu tutor - bastaria que um amigo lhe tivesse sugerido a leitura dos livros de Aristóteles.

   Por isso, a contribuição dos intelectuais à política só pode se dar de duas maneiras. Se são verdadeiros intelectuais, ou seja, criativos, devem expressar idéias inovadoras em seus escritos, cabendo aos políticos se limitar a ler o que escreveram. Também pode ocorrer que um político sinta falta de idéias claras que iluminem alguma questão sobre a qual nem ele nem os intelectuais conheçam o suficiente. Nesse caso, o político deve solicitar que se façam novos estudos sobre o assunto.

   Assim é. De resto, se acontece de algum intelectual ser integrante de um partido político e não trabalhar em sua assessoria de imprensa, isso não tem nada a ver com seu papel específico na sociedade. Trata-se de um cidadão como qualquer outro, disposto a colocar suas habilidades profissionais a serviço do próprio grupo. É como um pedreiro que dedica o tempo livre a ajudar na reforma da sede do partido.

   Num breve artigo no jornal italiano Corriere della Sera, Luciano Canfora me repreendeu por não ter mencionado Sócrates. Ele tem razão. Eu tinha em mente uma quarta função dos intelectuais e não falei sobre isso por falta de tempo. Sócrates exerceu seu papel ao criticar a cidade onde vivia e aceitou ser condenado à morte a fim de ensinar a importância de respeitar a lei. Não sei se Sócrates era um deles, não, mas acho que os intelectuais têm um dever adicional no caso de pertencer a um grupo - não devem falar contra os inimigos desse grupo (é para isso que servem os porta-vozes), mas contra os próprios companheiros. O intelectual tem de ser a consciência crítica do grupo. Ele existe para incomodar. De fato, nas situações mais radicais, quando o grupo chega ao poder por meio de uma revolução, os intelectuais incômodos são os primeiros a ser fuzilados ou mandados para a guilhotina.

   Não creio que todos os intelectuais gostariam de chegar a esse ponto, mas devem aceitar a idéia de que o grupo ao qual decidiram pertencer não vai gostar muito deles. Se eles se tornarem muito queridos, ou mimados, acabarão por virar algo pior que os intelectuais orgânicos. Serão os intelectuais de um regime. (Umberto Eco é ensaísta e ficcionista, autor de O Nome da Rosa e O Pêndulo de Foucault, entre outros)

(© Revista Época)

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