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O Elogio da Feiúra

Umberto Eco
 

Em um compêndio sobre 3 mil anos de pesadelos, terrores e inquietações, o escritor Umberto Eco mostra como o feio serviu para estabelecer novos parâmetros para o belo ao longo da história

Edward Pimenta

Os pensadores nunca despenderam muita energia para falar do feio em seus tratados estéticos. Em geral, a feiúra sempre foi vista como mero oposto da beleza e, ao longo da história da fi losofi a, fi cou mais ou menos entendido que as muitas defi nições do belo, de Platão a Nietzsche, também dariam conta de seu contrário, o feio. Daí que, por absoluta falta de teoria para consultar, alguém que pretenda contar a história universal do feio deve recorrer às "fontes primárias" - ou seja, a arte produzida ao longo dos séculos, um território comumente entendido como pertencente aos domínios do belo. Foi o que fez o crítico e escritor italiano Umberto Eco em História da Feiúra, livro que dá seqüência à sua História da Beleza, publicada no Brasil há quatro anos. Entre um título e outro, há mais semelhanças que diferenças.

A edição é composta por uma rica coleção de imagens e excertos de textos literários, da Grécia antiga ao movimento punk, numa edição que, como o volume anterior, impressiona pela abrangência. Há textos do primeiro pensador que levou a feiúra a sério, o filósofo neoplatônico Plotino (séc. 3 d.C.), passando pelo dramaturgo inglês William Shakespeare (séc. 16), chegando a escritores clássicos, como o inglês Oscar Wilde e o tcheco Franz Kafka, e populares, como o americano Stephen King. As imagens seguem a mesma linha, incluindo relevos da antiga civilização greco- romana, gravuras medievais, pinturas do catalão Salvador Dalí e obras do francês Marcel Duchamp. São quase 500 páginas que conduzem por um caminho de 3 mil anos de sonhos intranqüilos, terrores e inquietações.

O primeiro ponto a destacar nessa história é que o conceito de feio, naturalmente, mudou ao longo dos séculos. Isso tem muito a dizer das culturas em que as diferentes idéias de beleza e feiúra dominaram. No Ocidente, o maior exemplo talvez seja a passagem do paganismo para o cristianismo. "O mundo grego é o mundo do belo. Os deuses gregos são deuses felizes e belos, possuem atributos sensíveis. Já o Deus cristão não se determina pela beleza, pela sensibilidade, mas pela espiritualidade. E a espiritualidade não necessariamente tem de ser bela", diz Marco Aurélio Werle, professor de filosofia da Universidade de São Paulo. Para ele, existe outro ponto de inflexão no século 19, com a abertura do conceito de razão. Passamos a ser mais tolerantes, a aceitar mais o "outro", outros povos e mentalidades, relativizando mais ainda a noção de beleza, algo que se estende até os dias hoje entre os teóricos do multiculturalismo.

Tipologias

Mas isso não basta. Mais do que afirmar que a noção de feio se transformou ao longo da história, e que ela varia de um povo para outro, o livro demonstra como as escolas artísticas o utilizaram para propor novas concepções do seu oposto — o belo. Esse é um patamar de análise completamente diferente. Não estamos falando apenas de sociologia e história, mas de estética e cultura.

Com essa idéia, a obra faz uma vasta tipologia do medonho e do repugnante, incluindo, entre outros, o feio do mundo clássico, o cômico, o obsceno, o romântico, o anti-feminino, o inquietante e o kitsch (veja, em textos e imagens, alguns tipos ao longo desta reportagem). Todas essas modalidades, por sua vez, encontram representação, além das artes plásticas, na mitologia, na religião e, não menos importante, na cultura pop. Os exemplos são muitos. Sempre com belas (e feias) ilustrações, vê-se como os artistas barrocos, entediados com a simetria das obras do Renascimento, propuseram a imperfeição das formas e do excesso como elemento de ruptura, para dar sentido a um mundo bem distante do equilíbrio.

Esse processo de contaminação do belo pela feiúra prosseguiu nos séculos 18 e 19, quando artistas e pensadores românticos adotaram o grotesco e o sublime como categorias estéticas; e depois, em fins do século 19, quando os decadentes se deliciaram com as idéias de enfermidade e de morte. Já no século 20, as vanguardas artísticas se voltaram definitivamente contra a idéia tradicional do belo, que lhes parecia ultrapassada, artificial e ingênua. Uma concepção que se traduz à perfeição na máxima do britânico Johnny Rotten, vocalista da banda punk Sex Pistols: "Não há nada mais chato do que um rostinho bonito".

Indústria Cultural

Umberto Eco faz questão de dizer que nem sempre essas formas revelam os costumes de diferentes épocas e povos. Picasso é um bom exemplo. No futuro, quando alguém quiser indicar com precisão o que representou para a civilização ocidental o máximo da beleza em nosso tempo, deverá passar longe do gênio espanhol e suas mulheres cubistas. Mais representativo seria se basear em mulheres esguias, jovens todas elas, top models perfiladas num clima festivo de peça de propaganda para uma grife de roupas íntimas. Nesse item em particular, vale mais a indústria cultural do que a arte propriamente dita.

O que fica da leitura do livro é que hoje não perdemos o sentido tradicional do belo e do feio, mas que nos acostumamos - principalmente por causa das vanguardas artísticas do século 20 e, depois, por conta da cultura pop - a reconhecer que não há uma oposição simétrica entre eles. Na concepção religiosa da Idade Média, essa oposição era ainda mais forte por conta de seu aspecto eminentemente moral, um aspecto bem definido pelo filósofo alemão Karl Rosenkranz, em 1853, um dos raros pensadores que se dedicaram ao estudo da fealdade. As gravuras do apocalipse, do inferno e dos demônios tinham o propósito de inspirar um terror penitente, "do bem". Hoje, ao assistirmos a filmes de terror com os mesmos temas, não reagimos da mesma maneira, mas não estamos livres de experimentar um certo fascínio. Daí o sucesso desses filmes.

Resta saber se a relativização do belo implica necessariamente a aceitação do feio. "Será que na base do aparente culto do feio não há um secreto anseio de tornar isso belo?", pergunta Marco Aurélio Werle. "Como é possível considerarmos, na representação, o feio belo, ao passo que na vida real não o toleramos? Essa me parece uma questão central, por exemplo, no cinema. Se tomarmos um filme como Tropa de Elite, o que temos é uma enxurrada de cenas violentas e, por assim dizer, 'feias'; entretanto, há um certo prazer nisso, de ver essa brutalidade representada", afirma. Ou seja, admitimos esse "feio" na arte, mas não na vida real. Em seu ensaio de introdução ao livro, Eco recomenda prudência em relação a esse respeito. Deixa ao leitor que decida, ao longo da História da Feiúra, se e quando poderiam ter razão as bruxas que, no primeiro ato da peça Macbeth, de Shakespeare, gritam: "Feio é belo, belo é feio..."

(© Bravo Online)

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