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Rossellini e o ofício de ser um homem

22/05/2009

Foto: Divulgação

Cena de Blaise Pascal, de Rossellini
 

Após filmar alguns dos clássicos do cinema, o diretor italiano realizou trabalhos 'didáticos' para a TV sobre grandes filósofos

Luiz Zanin Oricchio

Blaise Pascal é o mais novo "filósofo" de Roberto Rossellini (1906-1977) lançado pela Versátil. Antes, já haviam saído Sócrates, Descartes e Santo Agostinho. São alguns dentre os filmes feitos para a televisão italiana pelo cineasta, pai do neorrealismo.

Dito assim parece coisa de nada. Mas a decisão de Rossellini, ao abandonar o cinema tradicional e dedicar-se a fazer filmes para a TV, causou muita polêmica na época. Afinal, tem-se o cinema como faceta mais nobre do amplo espectro do audiovisual. É, por assim dizer, como a "alta costura" do audiovisual, enquanto a televisão seria o prêt-à-porter. O que então teria levado em direção à TV o renomado mestre, autor de obras clássicas como Roma Cidade Aberta, Paisà, Alemanha Ano Zero e Viagem à Itália? O próprio Rossellini deu a resposta a essa pergunta, em 1963, com uma frase provocativa: "O cinema está morto". Morto? No início dos anos 1960, década dos grandes realizadores, de Federico Fellini a Michelangelo Antonioni, sem falar do nosso Glauber Rocha? A frase causou grande impacto. Inclusive entre colegas que, melindrados, não deixaram de criticá-lo. Um deles, o mais ilustre, foi direto na jugular do italiano: "Acontece que é o cinema de Rossellini que está morto", disse Alfred Hitchcock. Resposta violenta de Hitchcock, que muitos atribuem ao ciúme por causa de Ingrid Bergman, atriz de vários dos seus filmes e que se tornou mulher de Rossellini. Caso rumoroso, aliás, pois a sueca era casada quando conheceu Rossellini e passaram a ter um caso. Ingrid passou a trabalhar com Rossellini e foi protagonista de filmes marcantes como Stromboli (1950) e Viagem à Itália (1954). Casaram-se, tiveram filhos, separaram-se.

Mas, enfim, a verdade é que Rossellini tinha lá suas razões para se decepcionar com o cinema. Segundo ele, a chamada sétima arte havia sido engolida pelo excesso de glamour e exibicionismo em sua esfera mais mundana, a do cinema comercial, hollywoodiano ou não. E mesmo o cinema dito de arte não estava a salvo, por ter sacralizado a figura do "autor", invenção francesa que havia colocado os filmes num patamar de culto, mas talvez pouco humano. Pelo menos segundo a ótica do humanista que era Rossellini.

Assim havia a televisão, que já tinha sido inventada fazia algumas décadas e, àquela altura, havia se transformado em meio de comunicação que atingia grandes faixas da população. O cinema ainda era bem popular, mas Rossellini já previa o papel dominante que a televisão viria a ter. Antevia, com olhar nem tanto de profeta, mas de utopista, imaginando que aquele veículo rápido e democrático bem poderia ser usado em benefício do povo, até mesmo como veículo de instrução. Daí lhe parecer de máxima importância dedicar-se a dirigir filmes didáticos. Foi assim que dirigiu filmes históricos como A Tomada do Poder por Luís XIV (1966) e A Era dos Médici (1973).

A série de filósofos entra nesse quadro geral. Vê-se que são filmes ascéticos, em busca do rigor e da simplicidade. Preocupam-se com os acontecimentos de vida dos personagens, mas também com o que pensaram e escreveram. Muitos dos diálogos são extraídos diretamente de suas obras escritas. No caso de Sócrates, modelo intelectual de Rossellini, que não deixou livros, as frases são extraídas das obras de Platão, seu discípulo, que a ele se refere com frequência em seus Diálogos e na Apologia de Sócrates.

Os filósofos escolhidos por Rossellini são homens obstinados em sua busca do conhecimento e, de maneira geral, em luta contra alguns elementos de seu tempo. Blaise Pascal (1972), o mais recente título lançado, mostra o rapaz inventivo, encarnando a luta entre a ciência e a superstição. É interessante ver o contraste entre o brilhante matemático, inventor da calculadora, que assiste, com horror e fascínio, ao julgamento de uma pobre mulher acusada de bruxaria. Esse confronto expõe, em linhas dramáticas, o combate, temerário e muitas vezes dissimulado, entre a fé e a razão.

Embate também registrado em outro filme, Descartes (1974), filósofo antecessor de Blaise Pascal na afirmação da racionalidade e do método científico. Rossellini extrai trechos inteiros de algumas das obras fundamentais do pensador, como O Discurso do Método (1637) e as Meditações Metafísicas (1641), para compor as ações "dramáticas" do personagem. São procedimentos teóricos de Descartes, cuja função seria fundar a autonomia do pensamento racional diante da fé. Vale dizer que, naquela época, toda démarche racionalista tinha de ser, também, uma negociação com a autoridade religiosa. Donde, nas Meditações, Descartes precisar, primeiro, ocupar-se das provas da existência de Deus, para apenas depois afirmar que o Cogito (a Razão) se sustenta por si só. "Eu sou, eu existo", deduz, pelo simples fato de pensar. A conclusão entrou para a história do conhecimento como a frase famosa "Penso, logo existo".

Já a questão abordada em Santo Agostinho (1972) é diferente, mesmo porque o momento histórico é outro e a, para usarmos uma expressão moderna, "agenda" filosófica da época pedia outras meditações que não as cartesianas. Rossellini faz seu personagem ocupar-se menos dos problemas de conversão religiosa do que do embate político sobre o qual se vê obrigado a tomar posição. Nascido no norte da África, colonizada pelo império romano, Agostinho converteu-se ao cristianismo e, como bispo de Hipona, combateu heresias como o maniqueísmo e o donatismo. A grande questão política que teve de enfrentar foi o debate crucial com o paganismo. Estes responsabilizavam o catolicismo e sua pregação de não-violência pela queda de Roma diante dos bárbaros. A polêmica entre Agostinho e os pagãos, saudosos do imperador Juliano (que tentou, sem sucesso, restituir Roma ao paganismo), ocupa boa parte desse filme intelectual porém de ritmo envolvente.

Mas talvez o mais emocionante perfil dessa série seja o de Sócrates (1971), mesmo porque Rossellini se identificava com o filósofo grego, que considerava uma espécie de herói intelectual. Vemos, ao longo do filme, Sócrates em ação, usando de sua melhor arma, o diálogo, para instilar a dúvida em adversários cheios de certeza. Uma longa sequência é dedicada ao julgamento e execução de Sócrates, acusado de vários delitos, entre os quais o de impiedade, culto a novos deuses e corromper a juventude. Sócrates poderia ter escapado à morte se tivesse abjurado suas ideias ou aceitado o plano de fuga dos amigos. Preferiu morrer, bebendo cicuta, a trair a si mesmo ou renunciar à cidadania ateniense. Essa postura, ética até o fim, fascinava Rossellini.

Talvez Sócrates tenha encarnado, de fato, o ofício que Rossellini se atribuiu, no final da vida. Decepcionado com o cinema e com os rumos que este tomava, mesmo por gente que se dizia influenciada por ele (como os diretores da nouvelle vague francesa), escreveu, em seu Fragmento de uma Autobiografia (Nova Fronteira, 1992), essa frase surpreendente. "Eu não sou um cineasta". E acrescentou que seu trabalho, na verdade, era outro. Árduo, extenuante, exigindo dedicação cotidiana e impossível de ser exercido com perfeição: o ofício de ser um homem.

René Descartes (1596-1650)

Nasceu na França. Com ele, temos uma nova espécie de filósofo, situado na base da revolução científica. O francês Descartes propôs a fusão da geometria com a álgebra, o que redundou na geometria analítica. Seus principais livros - Regras para a Direção do Espírito, Discurso do Método, O Mundo ou Tratado da Luz e Meditações Metafísicas - estabelecem as bases para o conhecimento da natureza, propondo algumas das regras da moderna ciência: analisar, ou seja, dividir as dificuldades em suas partes elementares para melhor estudá-las, e depois reuni-las de novo através da síntese. É considerado por muitos o iniciador da filosofia moderna, além de pai do racionalismo. Boa parte da filosofia escrita desde a publicação de sua obra dialogou diretamente com as ideias por ele propostas.

Santo Agostinho (354-430)

Nasceu no norte da África, na época parte do Império Romano. Foi professor de retórica em Milão, converteu-se ao cristianismo e tornou-se religioso. Suas obras principais são A Cidade de Deus e Confissões. Influenciado por Platão, fez a ponte entre o pensamento grego e a doutrina cristã. A influência do pensamento de Agostinho se estendeu até a Idade Média. Respeitava a capacidade de conhecimento do ser humano mas afirmava que a revelação da fé era mais importante.

Sócrates (470-399 a.C.)

Grego, delimitou uma época da história da filosofia, tanto assim que os autores anteriores a ele, como Tales, Heráclito e outros, são chamados de pré-socráticos. Denominava seu método de "maiêutica", o parto de ideias, que, pelo diálogo, colocava em crise as certezas dos interlocutores. A frase que define sua postura diante da vida é "tudo que sei é que nada sei". Foi condenado à morte pelos tribunais de Atenas e obrigado a beber cicuta.

Blaise Pascal (1623-1662)

Francês, inventou a primeira máquina de calcular que se conhece. Com tamanha paixão pela área de exatas, é curioso que tenha popularizado a seguinte frase: "O coração tem razões que a própria razão desconhece". É também famosa a chamada "aposta de Pascal", raciocínio utilitarista sobre a existência de Deus. Quem acredita, tem tudo a ganhar, certo ou não. Quem duvida, nada ganha se estiver certo e vai para o Inferno se errado.

(© UOL Notícias)


Atualização em 24.05.2009:

DVDs - Crítica

Em cinebiografia de Descartes, Rossellini fala para iniciados

UIRÁ MACHADO
COORDENADOR DE ARTIGOS E EVENTOS

"Penso, logo existo" é a frase mais famosa do filósofo francês René Descartes (1596-1650), mas o cineasta italiano Roberto Rossellini (1906-1977) escolheu outra, bem menos difundida, para conduzir a cinebiografia do pensador: "A ciência me impediu de viver a vida".

A afirmação dramática, até surpreendente para os que se acostumaram a associar o cartesianismo à primazia da razão, faz parte da sequência final de "Descartes" ("Cartesius", no original), o quarto longa sobre filósofos que o mestre do neorrealismo italiano filmou para a TV na década de 70, no final da carreira (completam a tetralogia "Sócrates", "Blaise Pascal" e "Agostinho de Hipona").

O Descartes que Rossellini apresentou ao público da Itália em 1974 chega agora ao Brasil em um DVD essencial para os interessados em filosofia.
Com base nas obras e na vasta correspondência do filósofo, o filme mostra dois aspectos em geral pouco abordados quando se fala desse pensador francês: seu lado humano, com dúvidas, angústias, medos e paixões, e o fato de ele ser um produto de seu tempo.

Não que o brilhantismo individual de Descartes não esteja lá. O filme "acompanha" três décadas da vida do pensador e expõe sua genialidade em diversas áreas -matemática, física, filosofia-, assim como seu profundo interesse pelas novas ciências, sua inquietação intelectual desde a juventude e a admiração que sua inteligência provocava nos interlocutores.

Mas o que Rossellini procura enfatizar é o contexto em que Descartes viveu. Desde a primeira cena, ele aparece rodeado de pessoas que debatem as teses de Nicolau Copérnico (1473-1543) e Galileu Galilei (1564-1642) acerca da mobilidade da Terra e do heliocentrismo ou que fazem experiências contrárias ao consenso "científico" da filosofia aristotélica.

Com isso, vemos um Descartes mundano, que acordava sempre depois do meio-dia, temia publicar sua obra -sobretudo após a condenação de Galileu pelo Tribunal do Santo Ofício, em 1633- e gostava de viajar pela Europa em busca de suas certezas racionais.

O resultado é uma ótima radiografia do amadurecimento intelectual do pai da filosofia moderna. Porém, se nisso reside o maior mérito do filme, aí está também sua grande fraqueza: à força de enfatizar o contexto da época e os conflitos internos do personagem, Rossellini deixa de explicar em detalhes a obra de Descartes.

Sem didatismo, os 162 minutos do filme, quase todos com diálogos densos, são pouco convidativos para quem não é familiarizado com o assunto. É um preço alto que Rossellini paga por sua escolha. No DVD, felizmente, os extras ajudam a sanar o problema.

DESCARTES

Lançamento: Versátil
Quanto: R$ 45, em média
Classificação: livre
Avaliação: bom

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