'Alegria', do autor italiano, foi vertida
para o português por Geraldo Holanda Cavalcanti, responsável também pela edição no
Brasil dos poemas de Eugenio Montale, que lhe deu um prêmio na Itália, e de Salvatore
Quasimodo
MOACIR
FERRARI AMÂNCIO
O brasileiro João Cabral de Melo Neto dizia que era um poeta lido e estudado mas
não era um poeta amado pelo seu público, como, por exemplo, Vinicius de Moraes. Pode-se
acrescentar, no âmbito internacional, o italiano Giuseppe Ungaretti (ver biografia nesta
página), que tem uma nova tradução de sua obra-prima, A Alegria, lançada no Brasil
(Record, 224 págs., R$ 30, bilíngüe), feita por Geraldo Holanda Cavalcanti, também
responsável pela voz de Montale e Quasimodo em português. Seus textos provocam amor à
primeira vista. Aconteceu com Apollinaire e a história continua se repetindo.
Os textos e a história deles são chocantes
nos dois sentidos que o termo adquiriu. Esses primeiros poemas do escritor nascido em
Alexandria no Egito, com passagem por Paris e São Paulo - inscrevendo-se entre os
desenraizados da época ao mesmo tempo em que mantinha a identidade italiana pelo idioma
de expressão -, surgiram com marco inicial do século 20, a 1.ª Guerra Mundial.
Mais, nasceu na própria trincheira, entre a
realidade imediata da violência e da morte e a constante, infinita evocação de
Leopardi. Nas notas que o tradutor incluiu, o próprio poeta conta como e por que escreveu
os poemas da segunda parte do livro, O Porto Sepulto, como sempre surpreendentes pela
leveza desdobrada em nuances de tons renovados a cada releitura. No beco sem saída da
trincheira, o poeta descobriu a liberdade artística radical: "Não tinha nenhuma
idéia de público, não queria a guerra e não participava da guerra para recolher
aplausos, tinha, e tenho ainda, um tal respeito por tão grande sacrifício como é a
guerra para um povo que qualquer ato de vaidade em semelhantes circunstâncias me teria
parecido uma profanação.
(...) Tinha feito uma idéia tão rigorosa, e
talvez absurda, do anonimato numa guerra destinada a concluir-se, nas minhas esperanças,
pela vitória do povo, que qualquer coisa que me tivesse, por pouco que fosse, distinguido
de um outro infante, me teria parecido um odioso privilégio e um gesto ofensivo em
direção ao povo ao qual, aceitando a guerra na posição mais humilde, tinha pretendido
dar um sinal de completa dedicação."
Eram reflexões para uso próprio, observa o
tradutor. Para manter viva a consciência e as emoções, para saber que continuava vivo.
São memórias resumidíssimas (o impacto vem na proporção inversa), diário de guerra
entre sombra e luz que se colocariam no centro das experiências do século.
Assinala o tradutor que "o livro começa
com um poema escrito no primeiro dia do poeta nas trincheiras da Guerra". Foi no
Natal de 1915. Nota de Ungaretti: "Eu estava em presença da morte, em presença da
natureza, de uma natureza que começava a conhecer de um modo novo, um modo terrível. A
partir do momento em que começo a ser um homem que faz a guerra, não é a idéia de
matar ou de ser morto que me atormenta: eu era um homem que não buscava outra coisa
senão uma relação com o absoluto, um absoluto que era representado pela morte, não
pelo perigo, que era representado por aquela tragédia que levava o homem a encontrar-se
no massacre. (...) Há a vontade de expressão, a necessidade de expressão, há a
exaltação, no Porto Sepulto, aquela exaltação quase selvagem do impulso vital, do
apetite de viver, que é multiplicado pela proximidade e pela freqüentação cotidiana da
morte.
Vivíamos na contradição." Nessa
estréia sombria escreveu um texto de reminiscências africanas, sobre um tal Moammed
enterrado num cemitério que parece uma feira desordenada: "E talvez apenas eu/ saiba
ainda/ que viveu."
É o encontro de dois anônimos duplicados em
tantos outros, amigos e inimigos destroçados no campo de batalha.
Mas por que Alegria? É a Alegria di
Naufraggi, título inicial de livreto publicado pela primeira vez em 1916, como assinala
Cavalcanti, embora o poeta não tenha explicado, que aludia ao mais conhecido poema de
Leopardi, que termina da seguinte forma: "E il naufragar m'é dolce in questo
mare."
Mas por que O Porto Sepulto? Mais uma vez a
África do nascimento, o ponto de partida que o vinculava a um passado para além de
Alexandre, que dera nome à cidade: "Falavam-me de um porto submerso que devia ter
precedido a época ptolomaica, provando que Alexandria já era um porto antes mesmo de
Alexandre... Disso nada se sabe." De igual modo, do cotidiano na trincheira, ou da
cátedra universitária, da morte do filho garoto em São Paulo após uma cirurgia besta
como o acaso, ou da trajetória de um homem, também não se saberá muito. O livro pode
ter sido salvo do desaparecimento pelo tenente Ettore Serra, que insistiu em ver o
conteúdo da pasta, num tempo em que tenentes e futuros ditadores eram excelentes
críticos literários. O pequeno livro saiu com prefácio de Benito Mussolini, que por
desvio de rota se tornaria o duce nefasto. "O porto sepulto é aquela parte de
segredo dentro de nós que permanece indecifrável", explicou Ungaretti.
Essa poesia escrita em torno do obscuro e da
luminosidade insuportável, inicialmente um solilóquio, seria incluída, como diz Hugo
Friedrich, no panorama do século, ao lado de Lorca e T.S. Eliot, formando um conjunto
não "inferior à força de expressão da filosofia, do romance, do teatro, da
pintura e da música". É outra angústia que canta.
(© O
Estado de S. Paulo)
Alexandria,
Paris, Roma e São Paulo
Poeta nasceu na África, estudou na
França e viveu na Itália e no Brasil
Filho de pais italianos, Giuseppe Ungaretti
nasceu no ano de 1888 na cidade de Alexandria, Egito, e só conheceria a Itália aos 24
anos, depois de ter estudado em Paris, onde teve o filósofo Henri Bergson entre seus
professores. Em 1932, recebeu o Prêmio Condotieri, pela sua poesia renovadora, e publicou
um novo volume, chamado Sentimento del Tempo. Quando o fascismo crescia na Itália, em
1936, a convite da Universidade de São Paulo, veio para cá com a família, ocupando a
cátedra de Língua e Literatura Italiana na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras.
Ministrou nesse período cursos sobre a formação da literatura italiana, Dante,
Petrarca, Manzoni, Leopardi, o romantismo, Boccaccio, humanismo, etc. Em contrapartida,
diria que a vida no País lhe permitira entender a complexidade do Barroco, por exemplo.
Ungaretti permaneceria em São Paulo até
1942, tornando-se amigo e divulgador de escritores brasileiros em italiano. Guilherme de
Almeida, Oswald de Andrade e Mário de Andrade participaram desse círculo, assim como
Paulo Emílio Salles Gomes e Lygia Fagundes Telles, entre outros. De 1942 até 1957, ele
ocupou a cátedra de literatura italiana na Universidade de Roma. A experiência
brasileira o acompanharia. Em 1952, por exemplo, organizou para a Rádio Italiana um
programa sobre o Brasil, com a tradução de poetas brasileiros seguida de comentários.
E, em 1967, recebeu o título de doutor honoris causa da USP. Seus livros foram traduzidos
para o português, francês, inglês, espanhol, alemão, russo, croata, húngaro, romeno,
japonês, etc. Recebeu todo tipo de honraria literária: de estudos a premiações. Mas,
embora fosse cotado, não chegou a receber o Nobel. O título que escolheu para suas obras
completas foi A Vida de Um Homem. (M.F.A.)
(© O
Estado de S. Paulo)
'Tradução deve ajudar a
entender o original' |
Para
Geraldo Holanda Cavalcanti, o interesse do leitor diante de um texto traduzido é saber o
que o autor diz, não cabendo ao tradutor a tentativa de 'melhorar' o texto
MOACIR
FERRARI AMÂNCIO
Antes da obra de Giuseppe Ungaretti, o
ex-diplomata Geraldo Holanda Cavalcanti, pernambucano, também poeta, traduziu os poemas
de Salvatore Quasimodo e Eugenio Montale, tendo recebido pela última o prestigioso
Prêmio Internacional Eugenio Montale, em Cremona, no ano de 1998. Tendo vivido 40 anos
fora do País, como diplomata, ele procurava compensar a linguagem profissional com a
leitura e tradução de poemas, na maior parte de autores italianos. Ele conta, por
exemplo, que o texto mais trabalhoso na versão de Ungaretti foi exatamente um dos mais
breves de toda a literatura, Manhã (reproduzido na capa), que tem apenas dois versos.
Pretende escrever ensaios enquanto aguarda a
publicação de um estudo sobre o Cântico dos Cânticos, em que analisa traduções do
texto bíblico.
Estado - Qual é, na sua opinião, a tarefa do tradutor?
Geraldo Holanda Cavalcanti - Sempre me interessei por
palavras, por sua capacidade de transmitir conceitos e de produzir emoções.
Profissionalmente, como diplomata, tive inúmeras ocasiões de defrontar-me com o problema
da tradução: como encontrar a palavra certa numa negociação bilíngüe para alcançar
o resultado correto e necessário. Mas na tradução de um texto negociado, o que se
procura obter é o acordo entre os conceitos. Na tradução literária, o que se busca é
o equivalente mais próximo da emoção originalmente intencionada pelo autor. Não se
dispensa o cuidado necessário para não trair as idéias e os pensamentos, mas se
acrescenta o de encontrar o correlato emocional, este produzido por um complexo de
conteúdo e de forma. Nesse trabalho, considero o tradutor, necessariamente um poeta, como
um servidor. Não deve buscar aparecer, sobrepor-se ao autor, falseá-lo ainda que para
melhor. Seu trabalho não é o de criador, mas o de intérprete, e, desde que está
traduzindo para um terceiro leitor, o de buscar a melhor maneira de fazê-lo sintonizar
com sua própria experiência de tradutor. Idealmente, a tradução deve servir ao leitor
interessado para que ele possa ler melhor o original.
Estado - Por que os italianos, e esses
italianos em particular?
Cavalcanti - Sempre me impressionou o fato de ser tão
pouco conhecida no Brasil a literatura italiana. Nesse sentido, aliás, é
incompreensível que Ungaretti, que viveu e ensinou em São Paulo, seja tão pouco
traduzido. Como tenho um grande apreço pela literatura italiana contemporânea - quero
dizer, do século 20 - pensei em dar minha pequena contribuição para diminuir esse
desconhecimento. Comecei por traduzir Salvatore Quasimodo, um pouco por acaso, pois o que
pretendia, na época, era penetrar melhor nos seus poemas que me pareciam de uma extrema
dificuldade. Isso foi pelos anos 80. Traduzi toda sua obra e depois fiz uma escolha de
cerca de 100 poemas para uma antologia que foi publicada pela Record. De Quasimodo, passei
a Eugenio Montale, de quem produzi, igualmente, uma antologia, e, finalmente, a Giuseppe
Ungaretti. Minha idéia original era, igualmente, fazer uma antologia, mas complicados
problemas de direitos autorais levaram a editora a preferir a tradução de um único
livro, este admirável A Alegria, a meu ver o que há de mais belo na poesia ungarettiana.
Por que os três? Porque são os maiores poetas italianos do século 20, dois deles,
aliás, Quasimodo e Montale, Prêmios Nobel de literatura.
Estado - Como o senhor vê Ungaretti na produção
lírica do século 20? Em que ele se diferencia de seus colegas italianos e de outros
idiomas?
Cavalcanti - Ungaretti é indiscutivelmente um dos maiores
poetas do século. Nele encontramos a poesia no seu estado mais puro. Com sua linguagem
despojada, sintética, suas metáforas irradiantes, trouxe uma luz nova para o hermetismo
italiano da qual irão beneficiar-se os poetas que lhe seguiram, inclusive os maiores.
Guardava um otimismo fundamental que o fazia acreditar no homem de uma maneira diferente
da de Quasimodo, com seu pessimismo natural - apesar de ter sido dos três o único a
produzir, numa fase de sua vida, uma poesia engajada - ou da de Montale, com sua discreta
desilusão ou ironia.
Estado - Algo que sempre surpreende e intriga é o
fato de Ungaretti ter feito um diário de tal delicadeza em plena trincheira.
Cavalcanti - Você tem razão em evocar a aparente
contradição entre o título da primeira obra de Ungaretti e as circunstâncias em que
foi criada. É preciso entender, porém, o que significa a alegria que dá título ao
livro. Em sua experiência da trincheira, não deixou Ungaretti de sentir profundamente a
dor, o desespero, a agonia da iminência ou da presença da morte. Mas soube experimentar,
também, e nisso está o grande mérito do homem e do poeta, aquela exaltação que o
momento efêmero podia aportar, capturada num forte sentimento de companheirismo e de
amor. O poeta soldado sabia que ele e os seus companheiros ali estavam como a folha no
galho da árvore, pronta a cair, e, ao mesmo tempo, sentia-se como nunca "attacato a
la vita".
Estado - Existem diversas teorias sobre tradução.
O senhor tem uma concepção própria a respeito do ato de traduzir, ou segue este ou
aquele autor?
Cavalcanti - Tornei-me tradutor para cumprir uma tarefa que
a mim mesmo me impus, partindo de concepções que elaborava para meu próprio uso. Queria
penetrar mais a fundo na poesia que eu lia, e queria, também, compensar a aridez da
linguagem burocrática a que me obrigava a profissão com uma atividade que permitisse
sobrenadar o vocabulário poético na minha língua, meu gosto e interesse pela linguagem
literária em português. Preciso, talvez, dizer que, como diplomata, vivi 40 anos fora do
Brasil, em nove países diferentes. Claro que hoje estou familiarizado com as distintas
teorias sobre a tradução. Mas não sou um crítico literário e não pretendo avaliar
sua pertinência. Posso resumir o que penso da tradução de poesia em poucas palavras,
repetindo um pouco o que já disse antes: o tradutor deve servir ao original, se possível
auxiliar o leitor interessado a melhor compreender o original; não deve buscar ser
"clever", desculpe a palavra em inglês, mas está aí um caso em que estou
falhando como tradutor, e não quero polemizar dizendo também que não deve reinventar o
poema, ou qualquer outra expressão semelhante que se queira usar. Não se procura um
poema traduzido para ler o tradutor, e sim, o autor.
Estado - Qual foi a maior dificuldade encontrada na
tradução de Ungaretti? Quanto tempo levou a tradução?
Cavalcanti - Não posso dizer quanto tempo levei para
traduzir nenhum dos autores que já publiquei. Os primeiros rascunhos datam dos anos 80,
quando eu era embaixador no México. Nessa época traduzi, também, Otávio Paz,
traduções nunca publicadas, e Álvaro Mutis. Desde então, sempre que me desafogavam os
afazeres profissionais, voltava às traduções que fui burilando continuamente. Mas foi
só com a aposentadoria que pude realmente dedicar-me a reuni-las para publicação. Para
isso foi decisivo o encorajamento que me deu Luciana Stegagno Picchio, a quem devo o
privilégio das introduções feitas para as antologias de Quasimodo e Montale, as
primeiras publicadas. Quanto às dificuldades especiais de Ungaretti, penso, sobretudo, no
laconismo de suas imagens. Talvez o poema que mais me torturou de todas as traduções que
já fiz foi o menor poema de que tenho conhecimento em qualquer literatura, o famoso
"M'illumino / d'immenso". Nenhuma palavra sobra, nenhuma falta, e a única coisa
que pude fazer com ele foi conservar-lhe o indispensável proparoxítono inicial.
(© O Estado de S. Paulo) |
|