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O primeiro Fellini, rascunho do gênio

24/08/2001

Alberto Sordi, como o xeque, e Brunella Bovo, como Wanda: a realidade invade a fotonovela

 


Volta, em cópia nova, 'Abismo de um Sonho', que se baseia numa idéia de Antonioni

LUIZ CARLOS MERTEN

   Havia a co-direção de Alberto Lattuada em Mulheres e Luzes e há, em Abismo de um Sonho, o ponto de partida fornecido pela idéia original de Michelangelo Antonioni. Por isso mesmo, os críticos hesitam em considerar o filme que reestréia hoje, em cópia nova, o marco inicial da estética, no fundo uma ética, felliniana. O primeiro filme realmente felliniano, eles diziam, seria Os Boas Vidas, que o diretor fez em 1953. É negar o que a volta de Abismo de um Sonho deixa claro: o filme ilumina a participação de Fellini em Mulheres e antecipa o que será seu cinema nos anos seguintes.

   Não é só a presença de Cabíria, a prostituta interpretada por Giulietta Masina, mulher do cineasta, e a quem ele dedicou um filme inteiro: As Noites de Cabíria. O onirismo, que será uma das marcas dominantes de Fellini, transparece na cena memorável em que Wanda, buscando o xeque branco dos seus sonhos, vê Alberto Sordi que ondula no balanço, pendurado nas árvores. São cenas, personagens e situações, é todo um conceito que voltará nos anos e filmes seguintes. E há, desde logo, a colaboração com o músico Nino Rota.

   Com ele, Fellini desenvolveu uma das parcerias mais notáveis da história do cinema, só comparável, talvez, à de Alfred Hitchcock com Bernard Herrmann e à de Eisenstein com Prokofiev. Foram notáveis, igualmente, mas músico, no cinema, se fosse preciso escolher só um, seria Nino Rota.

   Pode-se preferir um Luchino Visconti, mas Fellini está no mesmo patamar dele, como um dos grandes do cinema italiano e mundial. E foi um dos diretores mais populares, não só da Itália, mas do mundo, um dos raros, senão o único, a incorporar o próprio nome aos filmes: Fellini Satyricon, Roma de Fellini, Casanova de Fellini. Nascido numa família da pequeno burguesia interiorana, Fellini foi jornalista em Florença e, depois, em Roma, onde integrou a equipe da revista de humor Marco Aurélio. Foi roteirista e ator, ligando seu nome a Roberto Rossellini, um dos expoentes do neo-realismo.

   Realismo interior - É neo-realista a inspiração de obras como Abismo de um Sonho e Os Boas Vidas, mas o movimento já estava mudando quando Fellini começou a dirigir. Ele foi dos primeiros a perceber as mudanças. Derrotada na 2.ª Guerra, a Itália olhou para dentro de si mesma, à espera de um renascimento, e gestou o neo-realismo. Com o reerguimento econômico, nos anos 50, a problemática social mudou e os diretores descobriram novos temas. Antonioni e Fellini inauguraram o que os críticos chamaram de realismo interior.

   Abismo de um Sonho conta a história de um casal. Ivã e Wanda são recém-casados. Chegam a Roma em viagem de lua-de-mel. O objetivo é encontrar familiares dele, visitar pontos turísticos e conhecer o papa. Quer dizer: esse é o plano traçado por Ivã. Sua mulher tem outros planos: ela aproveita a soneca do marido para realizar seu sonho. Parte em busca do xeque branco, personagem das fotonovelas que preenchem o vazio que, para ela, é sua vida.

   A jornada em busca do xeque é um desastre que a levará a uma tentativa de suicídio tão patética quanto aquela de Giulietta Masina em As Noites de Cabíria. O marido, desesperado, sentindo-se traído e abandonado, procura-a durante todo o dia e, à noite, no limite do desespero, topa com a própria Cabíria.

   Ainda não é a figura inesquecível de As Noites de Cabíria, mas já possui algumas de suas características. Cabíria reage à dor de Ivã, chamando sua atenção para o engolidor de fogo. Essa capacidade de renascer das próprias cinzas, de encarar o futuro com uma esperança que é imorredoura, é o forte da personagem. Em As Noites de Cabíria, lançada ao solo, ela toca a terra para renascer. Em Abismo de um Sonho, Ivã não olha para o chão, mas para o céu estrelado, em busca de redenção.

   Embora fosse de Antonioni a idéia de Abismo de um Sonho, Fellini era mesmo a figura ideal para dirigir o filme. Nos seus anos de aprendizado, em Roma, ele trabalhou nos fumetti, escrevendo argumentos para fotonovelas. Até por essa experiência, Fellini deve ter-se sentido estimulado para fazer Lo Sceicco Bianco (título original de Abismo de um Sonho). A vida é sonho, diz para Wanda a autora das aventuras do xeque. E o desfecho, que parece tranqüilizador, encerra na verdade uma nota de apreensão e desequilíbrio.

   A caminho da audiência com o papa, Wanda diz a Ivã que ele é o seu xeque branco. Uma nuvem passa no olhar do ator Leopoldo Trieste. Satisfazer à necessidade de sonho de Wanda talvez seja a maldição desse pequeno burguês um pouco ridículo. Uma última palavra, sobre Brunella Bovo, que faz Wanda.

   Essa atriz hoje esquecida faz parte da história do cinema e não por esse filme, apenas. É inesquecível também em Milagre em Milão, de Vittorio De Sica, em que compõe uma frágil heroína chapliniana como deveriam ter sido (mas nunca foram) as mulheres das comédias de Charles Chaplin, segundo a feliz definição da crítica americana Pauline Kael. (O Estado de S. Paulo)

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