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Obra "da vida" de Buzzati retorna

 

 

"O DESERTO DOS TÁRTAROS"

Embora tenha se formado em direito, o escritor italiano Dino Buzzati (1906-1972) dedicou-se desde cedo ao jornalismo. Foi na redação do "Corriere della Sera", onde sempre trabalhou, que lhe ocorreu a idéia daquele que, mais tarde, classificaria como o livro de sua vida: "O Deserto dos Tártaros".

Concorde-se. Publicado em 1940, o romance não é apenas uma das mais formidáveis obras da literatura italiana do século 20, o que já seria um feito extraordinário, quando se considera que no período a prosa de ficção nascida na Itália teve talentos do porte de Carlo Emilio Gadda (1893-19) e Italo Calvino (1923-1985).

"O Deserto dos Tártaros" ultrapassa tal condição. Trata-se, sem favor nenhum, de um clássico moderno, se por clássico forem entendidos os livros que, entre outras particularidades, representem -como, aliás, ensinou Calvino- "uma riqueza para quem os tenha lido e amado, porém constituam uma riqueza não menor para quem se reserva a sorte de lê-los pela primeira vez nas melhores condições para apreciá-los".

O leitor brasileiro que, não importam os motivos, continue "reservando a sorte de ler pela primeira vez" a pequena obra-prima de Buzzati pode quebrar a espera: o romance voltou recentemente às livrarias do país, em sua quinta reimpressão. Um retorno, diga-se de passagem, recebido com discrição, o que é compreensível no Brasil, entretanto injusto; esperado, mas estulto.

Retome-se a origem da obra. Entediado com as tarefas que cumpria à noite no jornal, Buzzati começou a ser assaltado por um sentimento de ansiedade diante do temor de que "aquele ramerrão (sua rotina no trabalho) continuasse ao infinito", consumindo-lhe "inutilmente" a existência. Convencido de que ali estava o enredo para um romance, ele decidiu, "quase que por instinto", transportar o desgaste da situação para uma fortaleza militar onde os soldados aguardassem, dia e noite, o ataque do inimigo.

Assim nasceu a história de Giovanni Drogo, jovem oficial convocado para servir num forte à beira do deserto. A justificativa para a manutenção do comando é a suposta ameaça de invasão do território pelos misteriosos tártaros.

Ocorre que os anos passam e os inimigos não aparecem, o que torna a espera e tudo o que ela envolve e representa uma espécie de renúncia à vida, posto que a fortaleza parece situada fora do mundo algo insuportável.

Curiosa e simultaneamente, essa espera-renúncia parece significar também a própria vida. É essa sensação de preenchimento pelo vazio da existência do protagonista que arrasta a história até a sua inexorável conclusão: no último capítulo, Drogo morre (como se o caminhar para a morte não fosse tão-somente a forçosa natureza da condição humana, e sim sua própria razão de ser, algo que acena com a negação da arte, da civilização esses guarda-chuvas contra o tempo de que se vale o homem cultural).

Num ensaio definitivo sobre "O Deserto dos Tártaros", incluído no livro "O Discurso e a Cidade" (São Paulo, livraria Duas Cidades, 1993), o crítico Antonio Candido observa que "durante a vida inteira, ele (Drogo) esperou o momento que permitiria uma espécie de revelação do seu ser, de maneira que os outros pudessem reconhecer o seu valor, o que o levaria a reconhecê-lo ele próprio. Mas aqui surge a contradição suprema, pois esse momento acaba sendo o da morte. Portanto é ela que define o seu ser".

Pode-se argumentar que a espera, com seus providenciais alarmes falsos de invasão, é a esperança que nos mantém, todos, vivos, apesar da certeza do fim; que há dignidade na morte de Drogo, portanto, dos homens em geral; que ele chega a tentar a desincorporação mesmo sentindo-se agora desligado de tudo o que tinha antes de seguir para o forte. Nenhum desses pontos, todavia, altera a inevitabilidade da solidão humana expressa pelo personagem.

Escrito ao longo de muitas madrugadas depois que Buzzatti chegava à sua casa, vindo do "Corriere", e se metia na cama, "O Deserto dos Tártaros" possui uma estrutura simples, que Antonio Candido dividiu em quatro segmentos, e um sentido preciso de alegoria (daí a pertinência de aproximar o autor italiano do tcheco Franz Kafka); nada está fora da necessária correspondência entre objeto e símbolo. Tal harmonia se dá inclusive no nível da linguagem, que equilibra poesia e crueza.

"O Deserto dos Tártaros" foi o terceiro romance de Buzzati -antes ele havia publicado "Bàrnabo delle Montagne" (1933) e "Il Segreto del Bosco Vecchio" (1935). Depois lançaria outras obras; contudo a angustiante trajetória de Giovanni Drogo continuaria a fazer sombra aos seus novos textos.

Referindo-se a "Um Amor", por exemplo, irretocável romance de 1963, Buzzati não conseguiu evitar a comparação: "Eu o escrevi com a mesma espontaneidade de "O Deserto dos Tártaros'". Os enredos, no entanto, são distintos. "Um Amor" narra as desventuras de um arquiteto de meia-idade que se apaixona por uma prostituta bem mais jovem do que ele.

Já um dos 156 fragmentos de "Naquele Exato Momento" (51) parece retomar "O Deserto dos Tártaros": "Uma noite, você volta para casa e lhe dizem que veio uma pessoa à sua procura. Perguntou por você com certa insistência (...). O visitante não retorna. E, de repente, algum tempo depois, surge uma dúvida sutil: por acaso aquele homem (ou mulher) não teria vindo por um motivo grande e decisivo? Não poderia ser aquela, infelizmente, a ocasião com que você sempre sonhou e que teria transformado toda a sua existência? (...) Por uma estúpida coincidência você não compareceu ao encontro com o destino. Nunca mais o desconhecido apareceu. Entretanto, em algum canto da alma, ainda esperamos que volte".

Drogo chegou tarde e desarmado ao encontro com o inevitável e por esse motivo sua vida só se realizou na morte. Saber pode não evitar nada, mas o conhecimento engrandece. "O Deserto dos Tártaros" é uma lição de saber. Há um crescimento amargo e prodigioso em sua leitura.(Rinaldo Gama, AF)

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